9 de fevereiro de 2013

O personalismo humanista de Max Scheler

por Angelo P. Campos*
 
Ícarus- Matisse
Max Ferdinand Scheler (1875-1928) foi talvez o mais profícuo de todos os fenomenólogos, levando sua investigação para o campo da ética. Assim como Heidegger, recebeu influência direta do pensamento de Edmund Husserl.

Contrapondo-se ao pensamento de Kant, para quem o imperativo da ação seria unicamente orientado pelo dever (ética deontológica), propõe como conceito fundamental o valor (ética axiológica). Na base da crítica da razão prática kantiana, mesmo reconhecendo seus méritos, está a recusa do formalismo nas proposições a priori (necessárias e universais), ante as quais introduz sua ética material dos valores. Neste caso, o materialismo dos valores da ética de Scheler opõe-se ao formalismo do dever da ética de Kant.

Valores, na ética de Scheler, não são elementos componentes de um plano de vivência intelectual, mas especialmente atividades de uma intuição emocional, não captáveis diretamente pelo intelecto senão pelo sentimento, verdadeira fonte da legitimidade da hierarquia dos valores, conforme podemos resumir do seguinte modo:

Primeiramente os valores sensoriais, tais como alegria/tristeza, prazer/dor; em seguida os valores civilizacionais sintetizados na utilidade e/ou no dano; depois os valores vitais, resumidos em nobreza/vulgaridade; os valores culturais (espirituais) como vivenciados na estética, na ética, na justiça e na especulação e, por fim, os valores religiosos. Tal conjunto de valores encontra-se na experiência da pessoa, para além da vontade ou do dever, sendo reconhecidos pela emoção.

A partir desses apontamentos é possível criticar as posições de ideólogos e antropólogos em relação ao problema do homem e sua posição no cosmos (a posição do homem na hierarquia dos valores).
Existem várias conceituações possíveis para o problema antropológico, a definição de “homem”. Historicamente essas conceituações são conflitantes, quando não totalmente incompatíveis. As concepções filosóficas, na intenção de superar unilateralidades e aspectos passionais em alguns casos, necessitam apoiar-se em bases completas o suficiente para considerar a inteireza, o holos, do ser, para depois traçar um paralelo entre eventos que possam conter as qualidades humanas. A tentação a se evitar seria a de eleger um evento como absoluto sem perceber o estrato da insuficiência, como por exemplo, idealizar o homem como ser criado, dependente de uma divindade, exaltando sua característica espiritual; ou idealizá-lo como resultado de processos mecânicos físico-químicos em evolução, exaltando a característica biológica; ou ainda idealizar as habilidades de transformação do meio ambiente, exaltando o caráter das obras. Em todos esses exemplos há algo valioso, não observável no enfoque exclusivista, que naufraga na linha da exclusão.

De modo geral, toda demarcação do homem subordina-o a um sistema de compreensão previamente ordenado.
Scheler, por outro lado, está em busca do “conceito essencial”, a incógnita peculiar ao homem. Existe uma posição de ser peculiar ao homem? Se sim, esta posição constitui o fundamento de um conceito essencial?

Em afirmativo, neste caso, toda possível conceituação do homem deve considerar os mais elevados estratos nele presentes, mesmo aqueles que o orientam na direção dos demais seres.  Onticamente quer se tratar dos estratos materiais (orgânico-inorgânico), dos sociais (relacionamentos interpessoais), dos afetivos (amor-ódio), entre outros, encontrando grande riqueza de valores.

Mais enfaticamente Scheler investiga os estratos de seres vivos em geral e nota como dimensão estruturante a individualidade ou, em outros termos, a construção de um mundo psíquico. Segundo Scheler os seres vivos já possuem um para-si. Em sua análise, porém, investiga o desenvolvimento evolutivo do para-si em quatro dimensões relacionadas em subordinação umas às outras.
A primeira dimensão seria a do impulso afetivo, i. e., a capacidade de ser afetado, quer dizer, sensivelmente afetado, que manifesta pela primeira vez a individuação, início da constituição psíquica do para-si. Esta dimensão, embora presente no homem caracteriza primordialmente as formas de vida vegetais, as quais expressam uma primeira ideia de um estado interno a partir da resistência aos entraves do ambiente. Em busca da luz e em busca da água, caule e raiz realizam contornos criativos, tal qual operação sensitiva de resistência. Esta ação do ser afirma a individualidade, a distinção perante o meio, expressão de uma vivência. Contudo, nesta dimensão do para-si, o impulso é meramente estático (ekstatico), pois inexiste consciência do mundo circundante (Unwelt). Tão somente existe uma primeira etapa de individuação e um sentido geral de estar vivo. Contudo, esta é a dimensão basilar, conservada em todos os demais seres vivos, inclusive no homem, como expressão original de resistência (Conforme Scheler, no homem a vivência da resistência seria a primeira matéria da concepção da realidade).


A World of Their Own / Lawrence Alma-Tadema

A segunda dimensão seria a do instinto animal, i. e., a expressão de um estado interno, como resposta do indivíduo perante o meio, contendo um sentido para o para-si. Scheler não intui a partir de uma relação mecânica com o mundo circundante, mas de uma resposta anímica ao meio que, por outro lado, não se constrói por escolha, não é livre. Nesta dimensão as sensações subordinam-se aos instintos, ou seja, somente são vivenciadas aquelas que condizem instintivamente a cada espécie. Pode até caracterizar um modo de saber e um modo de agir, contudo, também aqui, não existe ainda propriamente a consciência ou a representação de objetos. A valoração, neste caso, existe por atração ou por repulsão aos constituintes do meio, sempre a partir da resistência. Embora não exista representação, o instinto animal segue algo específico, uma distinção, portanto um para além da dimensão do impulso afetivo e, como tal, um contínuo processo individual de resistência e um separar-se do meio.
A terceira dimensão seria a da memória associativa, i. e., a capacidade do individuo de relacionar-se com o mundo circundante a partir de elementos significativos. O para-si, neste caso, consegue associar a ação individual com os fatos. A ação tomada como um aprendizado sobre o Unwelt (não um mero condicionamento do para-si), possuidora de um sentido transcendente ao instinto. O instinto fornece as bases da ação, mas o sentido aprendido na vivência passa a fazer parte do instinto como memória e não como ato.

Finalmente, a quarta dimensão abordada, seria a da inteligência prática, i. e., a capacidade do para-si de relacionar internamente as ações pessoais com alguns constituintes do meio, respondendo a uma necessidade prática, sem contudo demonstrar a posterior capacidade de representar tais constituintes e suas relações.
Após essas considerações, a questão da conceituação do homem ganha novos sentidos com a obra de Scheler relacionando então as categorias de espírito, pessoa e ideação. Pois o homem, afinal, realiza a dimensão da existência em que se revela a máxima distinção em relação ao meio. O princípio que permite a distinção total entre o homem e o meio está além daquilo que se denomina como vida. Scheler fala do espírito. Mas espírito enquanto possibilidade.

Qual seria então a posição do homem no cosmos?
O homem não tem posição alguma no cosmos. Como unwelt, o cosmos é que tem uma posição no homem. A tanha das doutrinas sobre o homem consistiu em querer introduzir nele uma essência. Mas tal coisa não existe, caminhando o homem pelo terreno da indefinibilidade.

Cada pessoa humana é simplesmente indefinível. O homem é uma travessia.
Minha travessia é, pois, um Sertão! E assim, de terreno a sereno, tenho feito minha Jardinagem.

*O autor é um mero Jardineiro. Somente em horas vagas dedica-se a coisas de valor reduzido, tais como a filosofia e a psicanálise.
Este trabalho está licenciado sob a Licença Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Brasil da Creative Commons.

25 de janeiro de 2013

A tríade existencialista


Angelo P. Campos *

Carta 21 do Tarot de Marselha (Jean Noblet, 1650)
A escolha, a afirmação do valor, a responsabilidade, o engajamento...  tudo isso um homem pode suportar? Um homem pode assumir? Não é possível procurar a maneira que convém viver acreditando unicamente na ação individual. Supor que o engajamento individual não compromete o outro falsifica as relações, sendo conveniência de má fé. O contrário, porém, a autenticidade consigo mesmo, implica assumir a tríade do existencialismo: a angústia, o desamparo e o desespero.
A angústia representou a fonte de inúmeros ataques ao pensamento de Sartre. Explicitada em seus romances e no ensaio de ontologia fenomenológica O Ser e o Nada, é apenas indicada em O Existencialismo é um Humanismo, amenizada, inclusive: “Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que já tiveram responsabilidades conhecem” (SARTRE, 2010,30). A angústia apresenta-se irremediavelmente conjugada à responsabilidade.

O desamparo é a consequência do fato assumido de que Deus não existe. Porém aqui, Sartre diferencia-se dos demais ateus e mesmo dos humanistas. Para esses, não havendo Deus – hipótese inútil – ainda há um a priori de alguns valores universais, ainda há uma “natureza humana” focada no bem. Ao contrário, para o existencialista, se Deus não existe, o incômodo é mais extenso, pois não existem também valores universais a priori, nem natureza humana alguma, nem nenhum bem inteligível. Eis o sentido do desamparo, irremediavelmente conjugado à liberdade absoluta. Eis o contexto da frase mais famosa do existencialismo: “O homem está condenado a ser livre” (SARTRE, 2010, 33).

Quanto ao desespero, Sartre define que a vontade própria ou as probabilidades da ação possível são as únicas ferramentas com que se pode contar. Estar entregue ao domínio das probabilidades, algo da ordem da vida que não se pode mudar, algo a que não se tem acesso. Algo fora do domínio humano. Mas contar com a probabilidade só é possível no momento em que a ação humana se conforma às possibilidades. Fora isso, resta apenas um sofrimento sem sentido.
Nisso também consiste a resposta de Sartre quanto ao problema do quietismo. Ao contrário do que proclamado pelos críticos, o existencialismo é uma filosofia da ação, radicalmente oposta ao quietismo. A realidade almejada pelo homem está no ato de projetar-se. Ele jamais se realiza no quietismo.

Para o existencialismo “só existe realidade na ação”. Pensar, sonhar, criar expectativas ou mesmo ter esperanças e cultivar a vida nesse entorno redunda na inutilidade e no malogro. Um homem é, e será sempre, aquilo que fizer de si mesmo, i. e., aquilo que realizar. Nada mais. A dureza desse pensamento é uma “dureza otimista”. Pretende mostrar que, para além das influências do meio, da sociedade, da constituição fisiológica e de qualquer tipo de determinismo a sossegar o espírito, inegavelmente há uma possibilidade de escolha. Não uma escolha qualquer, mas aquela pela qual nos tornamos responsáveis. É esta, e somente esta escolha, a portadora da autenticidade da ação, mesmo quando nada há de heróico nela.
O que, segundo Sartre, a maioria de seus críticos e, de um modo geral a maioria das pessoas se recusa aceitar é a dureza otimista, a exigência de engajamento. Se levarmos em consideração o momento histórico da exposição dessas teses e a condição geral da Europa pós-guerra, o discurso existencialista parece demasiado radical e talvez não seja estranha a dimensão da recusa ou a dificuldade em compreendê-lo. No entanto, no transcurso de sete décadas, o que resta ao homem do trato com a liberdade? E em que medida se pode afirmar o assunto da responsabilidade?

O cenário do mundo contemporâneo não transita por esse ideário. A civilização que se quer “mundial” (esta que se autodenomina “aldeia global”) dialoga com a inautenticidade. O contrário dela é o existencialismo, filosofia para poucos. Não é possível aceder a ela sem atravessar uma crise. Nisso, há que se cultivar a “dureza otimista”. Porque não há definidor melhor para a atualidade do que este: momento de crise. De resto, pergunto-me se não foi mesmo sempre assim. Será?

* O autor contenta-se em ser Jardineiro. Nas horas vagas dedica-se a funções de menor mérito tais como a filosofia e a psicanálise.
 

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