Ensaios

O Pensamento de Jiddu Krishnamurti

Temos o costume, em nossa cultura ocidental, de nos referirmos à Filosofia seguindo as referências deixadas pela tradição acadêmica, isso é, tratamos por filósofos aqueles pensadores que foram e continuam sendo indicados como tais nas escolas, revistas e livros específicos. Essa simples forma de classificação, catalogando alguns como filósofos e discriminando outros, mesmo que veladamente, torna essa divulgação não propriamente um meio de acesso à cultura universal, mas justamente um obstáculo a ela. Ora, quem decide algo sempre o faz de acordo com certos pontos de vista, tem determinadas razões e objetivos, cumpre orientações ou está sujeito a uma influência de esfera superior, seja cultural, política ou econômica; ao fazer essa escolha por um nome que deva ser reconhecido, estudado - e de certa forma idolatrado - acaba por torcer o curso da história e ofuscar linhas divergentes daquelas que estabeleceu como ideais.

Contudo, se há um campo em que por excelência a liberdade seja condição imprescindível, esse é o do pensamento filosófico. É importante considerar, se somos honestos em nossa busca pela verdade, duas coisas essenciais: primeira, que ela jamais poderá ser definida e contida num conjunto de conceitos e prerrogativas, por mais vasto e lúcido que se pretenda; e segunda, todos os seres humanos, de todas as épocas, possuem o direito à independência de questionamento e interpretação, mesmo que sejam radicalmente contrários àqueles que por qualquer razão foram definidos como os "mais aceitos".

O ensino da Filosofia, considerando que isso seja possível, não pode definir a priori, mesmo que tacitamente, quais pensamentos devam ser excluídos e abandonados, ou mesmo rechaçados, contanto que sejam livres de dogmas na sua busca de respostas. É preciso aqui fazer um parêntesis para esclarecer o que se considera Filosofia neste contexto, já que falamos em liberdade.

Um pensamento que se pretenda filosófico deve, tanto quanto seja possível àquele que o elabora, seguir todas as pistas que a razão, o sentido, a intuição colocam ao seu dispor; isso porque o dever de um filósofo é procurar a realidade de cada proposição, julgando-lhe a coerência e a capacidade de sustentação, de forma que se por um motivo qualquer se mostre falha, tosca, infundada ou mesmo de má fé, deva ser então apontada como tal e portanto descartada. Mesmo sabendo da eterna condição de falibilidade humana, não há outro caminho a percorrer; se um pensador age com correção ética e lógica, mantendo-se atento e firme ao seu propósito, mesmo reconhecendo que possa errar deve estabelecer aquilo que é verossímil do que é ilusório ou engodo. Se falhar, aqueles que o sucederão terão mais chance de êxito, num processo contínuo em busca da verdade.

Por esse motivo, uma filosofia jamais poderia partir de um pressuposto para estabelecer verdades relativas; compete a ela antes questionar justamente a sustentabilidade dessa base. Por exemplo (como foi feito em larga escala na Idade Média), se um pretenso filósofo, por mais lógico que demonstre ser, parte de um axioma para construir seu edifício mental, compromete irremediavelmente todo o seu raciocínio e sua posterior aceitação simplesmente porque quis definir uma verdade sobre uma crença. Afirmar que existe um Deus e a partir daí tecer um tratado sobre o que quer que seja é justamente não filosofar. A Filosofia não cria labirintos intelectuais que nada podem fornecer além de vaidade; seu objetivo não é a masturbação mental, o esforço inútil, a ferramenta do poder; filosofar significa sobretudo diminuir a ignorância, não torná-la uma lei.

Este exemplo não pretende de forma alguma afirmar ou negar a existência de qualquer divindade, apenas esclarecer que esse ponto básico é necessariamente incomprovável, não tem qualquer solidez para permitir um desenvolvimento a partir de si mesmo e portanto não pode criar assertivas. Deus é um artigo de fé, pertence à outra esfera de complexidade na mente humana, não pode ser alcançado e muito menos definido pela Filosofia.

Mas estamos criando limites para a Filosofia? Isso não contraria o que foi dito logo ao início deste texto?

Esta questão deixa claro que não há simplismos aceitáveis no caminho do filosofar. Ao afirmar que o homem deva procurar por todas as encruzilhadas, que deva analisar cada ramo, que deva ir adiante simplesmente para voltar depois, não depreciamos a Filosofia, mas ao contrário a justificamos. Quando uma hipótese é abandonada, isso só é feito se demonstrada sua inviabilidade, sua falha, sua incoerência. Esse é o papel do pensamento filosófico. Retorna-se então ao ponto anterior e persiste-se na busca, abrangendo as variantes que surjam até exauri-las. E quando se reconhece que um caminho não pode ser trilhado, como fez o Ceticismo, isso demonstra sua lucidez e seu caráter, o que não quer dizer contudo que a busca não continue, que o sonho do conhecimento não nos motive, que o cognoscível não seja pretendido.

Mas partir de um pressuposto é uma coisa, negar um caminho antes de percorrê-lo é outra bem distinta.

Alguns filósofos, por exemplo, são listados durante os cursos universitários e registros históricos, contudo são deliberadamente ostracisados, isso é, relegados ao esquecimento. Isso se dá particularmente com aqueles indesejados, mesmo que esse termo jamais seja pronunciado nas salas de estudo e discussão. É o que acontece com Nietzsche, muito citado - pela força do seu pensamento - mas jamais estudado a fundo pela perigosa polêmica das suas afirmações; é o que acontece com o Existencialismo de Sartre, nomeado de passagem e logo abandonado, pelo mesmo motivo de incomodar abertamente o modo como vivemos e os valores que estabelecemos (porque, mesmo que haja Filosofia, a maior parte das pessoas não quer abrir mão do seu conforto subjetivo, da segurança psicológica e emocional, daquilo que representa suas justificativas e fortalezas). Em resumo, a Filosofia é muito bonita, desde que não aborde com franqueza demasiada a responsabilidade que deveríamos ter e que muitas vezes fazemos o possível por negligenciar.

Talvez pelos mesmos parâmetros tenham sido excluídos os filósofos árabes - que tanto contribuíram para a difusão do conhecimento grego no mundo europeu - ou os filósofos chineses, indianos, orientais de uma forma geral. Quem já ouviu falar de filosofia africana? Quantos filósofos russos são lidos e estudados? Assim, a Filosofia disseminada nos círculos acadêmicos tem mais a forma de um corpo teórico conveniente, uma ilustração do pensamento ocidental, uma espécie de museu da lógica, mas deixou para trás o mais importante, que é exatamente a busca incansável do que seja a verdade - mesmo que jamais possa ser plenamente alcançada - porque é esse exercício é que nos torna melhores, mais lúcidos, responsáveis e dotados de uma visão capaz de nortear nossos passos e preparar o próprio futuro.

Este trabalho pretende apresentar um filósofo indiano chamado Jiddu Krishnamurti, que viveu no século passado e teve a oportunidade de conhecer a cultura ocidental, notadamente a inglesa. Foi criado em meio ao conhecimento milenar acumulado pela humanidade (segundo a visão da Sociedade Teosófica fundada por Annie Besant) e destacou-se pela originalidade e independência do seu pensamento, não construindo tratados sobre o mundo mas infinitos questionamentos sobre a mente humana. O resultado inevitável foi uma revolução.

Numa de suas palestras, Krishnamurti afirmou, ao contrário do que disse o grego Protágoras, que o homem não é a medida de todas as coisas. A realidade precisa ser observada e não julgada, e em hipótese alguma submetida à pretensão humana.

Apesar de não ser considerado um filósofo e sim um sofista, Protágoras marcou o modo como o pensamento do homem grego - e mais tarde o europeu e o americano - iria definir a próprio caminho: uma longa estrada antropocêntrica; uma forma de ver a vida, sem dúvida, mas apenas uma forma. Existiriam outras asserções possíveis? Como disse Freud, a Astronomia, a Biologia e a Psicanálise contribuíram para modificar isso. Mas o apego humano é compreensível... como escreveu Pascal, "o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora".

Jiddu Krishnamurti não foi um filósofo acadêmico, não teve títulos universitários nem seguiu correntes de pensamento de determinadas escolas. Profundamente crítico, muito cedo compreendeu a necessidade humana de proteção e segurança que leva à criação de tratados, dogmas e ídolos, mesmo que isso se dê de uma forma travestida e recoberta de amparo institucional. Seu pensamento, em síntese, afirma que o homem elabora muitos mitos em qualquer tempo, incluindo o atual; tem uma necessidade muito grande de heróis, o que o faz recorrer sempre à autoridade intelectual - não para esclarecer a si mesmo, mas dar aval a teorias que sejam de alguma forma confortantes; e que a responsabilidade de amadurecimento e liberdade cabe a cada um, independente de teorias e tradições.

Por abordar assuntos de âmbito interno ao comportamento humano e não vir das academias, Krishnamurti foi confundido e tratado como um profeta ou guru oriental, mas foi justamente contra essa tendência humana de seguir líderes e procurar salvadores que teceu sua crítica mais dura e dedicou todas as suas palestras e livros. Como ele mesmo disse em 1929:

"Quando Krishnamurti morrer, o que é inevitável, vocês começarão a formar regras em suas mentes, porque para vocês o indivíduo Krishnamurti representa a Verdade. Então, construirão um templo, criarão cerimônias, inventarão frases, dogmas, sistemas de crenças, doutrinas e criarão filosofias. Se construírem grandes fundações em minha homenagem, ficarão aprisionados nessa casa, nesse templo, e então serão obrigados a ter um outro guia para desembaraçá-los desse templo. Mas a mente humana é tal que vocês erguerão outro templo ao redor dele, e assim sucessivamente."

Para Krishnamurti toda definição é ilusória, destituída de importância. As coisas não podem ser reduzidas, concentradas, conceituadas como se fosse possível compreender num conjunto de palavras a realidade. Tudo é absolutamente vasto e complexo e precisa ser analisado pelo investigador no instante presente, com muito cuidado e uma atenção concentrada na própria atividade mental. Quando se chega a uma conclusão, ela traz consigo uma história, um contexto, um processo individual. Se é reduzida a palavras, perde-se, sendo verdadeiramente incomunicável; se significa algo profundo, capaz de promover mudanças, torna-se incorruptível. Isso quer dizer, por outra forma, que o conhecimento filosófico não é fruto de um acúmulo, como se dá na ciência, nem pode seguir dogmas, como se dá na religião; deve, antes de tudo, afastar-se de enciclopédias e livros sagrados para formar-se no instante preciso pelo esclarecimento daquele que busca. Memória não é conhecimento.

Por abordar temas dessa natureza, talvez Krishnamurti pudesse ser considerado o filósofo da mente. Uma das tônicas do seu pensamento é a noção de tempo. Não aborda evidentemente a pesquisa do tempo cronológico, da passagem de ações consecutivas, mas sim o significado do tempo psicológico, da maneira como temos por hábito tratar o tempo em nossas formulações mentais. Para Krishnamurti, tempo é igual a separação. Quando alguém introduz o princípio do tempo no seu pensamento, está criando uma distância entre o agora e o futuro, entre o ser e o vir a ser. Segundo ele, o mundo somos nós, nós somos o mundo. Dessa forma, quando alguém diz que é de um jeito mas espera ser de outro, ou que algo é assim mas deveria ser de outra maneira, que pretende deixar de fumar ou de ser violento, por exemplo, ele estabelece o conflito que o desgasta sem trazer qualquer conclusão, criando uma dicotomia entre a mente que observa e o mundo que é observado, entre o agora e o depois; em vez de compreender a realidade esse alguém a duplica, separa-a em duas, cria um abismo e uma ilusão. Agindo assim exime-se da responsabilidade e em vez de compreender a questão afasta-se dela, criando um labirinto que exigirá dele cada vez mais conjecturas, numa necessidade constante de explicações, defesas, estruturas rígidas capazes de proteger suas conclusões. Finalmente perde-se num emaranhado ou simplesmente desiste.

Nas suas palavras, "enquanto existir dualidade (o experimentador e a coisa experimentada, o observador e a coisa observada), haverá deformação, porque o experimentador é o passado com todos os conhecimentos e memórias nele acumulados. Insatisfeito com as atuais experiências, deseja ele uma experiência muito mais grandiosa. Projeta-a como idéia e trata de alcançar essa projeção: mais uma vez, dualidade e deformação."

Em outras palavras, Krishnamurti aponta que a lógica tem limitações muito claras. Não pode ser a ferramenta para todo tipo de busca, uma vez que cria hábitos, trilhos nos quais caímos inevitavelmente. Em geral, em vez de permitir a observação pontual de uma etapa do próprio funcionamento da mente, ela tende a apontar a etapa seguinte, desenhando sobre o abismo a ponte em que pisa sem no entanto ter estabelecido qualquer apoio na borda oposta. O que há de extremamente complexo no pensamento de Krishnamurti é que durante a tarefa de compreensão o observador não pode prescindir da própria mente, e esta tem uma tendência inegável de completar a realidade segundo sua própria ansiedade, verdadeiramente temerária.

Diante desse fato, como observar então a realidade? Para Krishnamurti, conhecer não é experimentar ou possuir informação: o conhecimento é um estado mental - um estado de extrema atenção em que a mente seja capaz de perceber ao mesmo tempo o mundo exterior e o próprio funcionamento. Uma mente atenta, livre de condicionamentos e de expectativas. Para tanto é preciso observar sem julgar, compreender sem pretender, aceitar o que é real independente de valores e medos. Se isso puder ser feito, chega-se ao conhecimento, e o conhecimento muda tudo ao redor. Nesse sentido, o pensamento de Krishnamurti assemelha-se muito ao cerne da Psicanálise: ao se conhecer verdadeiramente o que se é e portanto a realidade, a origem do problema fica clara, e esse esclarecimento promove mudança.

Krishnamurti, aliás, foi contemporâneo ao desenvolvimento da Psicanálise. Nasceu em 11 de maio de 1895 e morreu em 17 de fevereiro de 1986. Sua história começa aos 14 anos, quando foi avistado numa praia da Índia por um membro da Sociedade Teosófica, uma instituição que buscava reunir o conhecimento milenar do ser humano nas suas mais diversas tradições espirituais. Surpreendeu por trazer em torno de si um ar de tranquilidade e segurança, de pureza mental - tinha a aura mais pura que qualquer outra pessoa, segundo os membros da ordem. Por este motivo foi interpretado como um ser especial, um novo messias que traria importantes revelações para a humanidade - e com essa intenção deveria ser educado.

Depois de aprender inglês e adquirir hábitos elementares da cultura ocidental, começou seus estudos mas não correspondeu da forma esperada; sua mente não se ajustava bem ao sistema de aulas e livros e preferia contemplar a natureza enquanto refletia. Contudo, prosseguiu até tornar-se a pessoa mais importante da ordem. Vinte anos depois viria a dissolvê-la, declarando que não era messias algum, que as pessoas não precisavam de gurus e que a libertação do ser humano só poderia ser alcançada por meio de esforço próprio e uma atenção dedicada e constante.

O escritor Deepack Chopra deixou o seguinte relato a seu respeito:

"Meu primeiro encontro com Krishnamurti foi nos anos 80. Ele estava dando uma palestra, era uma manhã fria de inverno, estava nevando e umas mil pessoas estavam esperando do lado de fora. Krishnamurti falou por duas horas. Ele foi direto, profundo e cruelmente honesto. Quando eu fui para fora, a neve tinha parado e o sol brilhava. Por alguma razão eu sentia que o sol estava brilhando e tinha esquentado porque eu estava me sentindo com brilho e calor por dentro. Eu nunca conheci Krishnamurti pessoalmente, embora fosse íntimo de muitas pessoas que estavam próximas a ele e vi o efeito notável que esse homem teve em suas vidas. Na minha própria vida Krishnamurti me influenciou profundamente e me ajudou, em termos pessoais, a ultrapassar os limites das restrições que eu mesmo impunha à minha liberdade."

Há um livro sobre sua vida chamado "Krishnamurti: Os Anos do Despertar", escrito por Mary Lutyens, uma integrante da Sociedade Teosófica que viveu na Índia por muitos anos e acompanhou o seu processo de desenvolvimento e sua revolução. Na Biblioteca Pública Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, pode ser encontrado pelo código 181.4L974k.Pc. Quem preferir, pode acessar um vídeo disponível na internet no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=dx1KEn02Yfc

Para finalizar, citamos abaixo alguns dos seus pensamentos:

"Qualquer espécie de filosofia e qualquer espécie de teologia representam, meramente, uma fuga à realidade do que é. Não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há
instrutor, não há autoridade. Só existe vós, vossas relações com outros e com o mundo, e nada mais."

"O intelecto não constitui o campo total da existência. Ele é um fragmento, e todo fragmento, por mais engenhosamente ajustado, por mais antigo e tradicional que seja, continua a ser uma parte insignificante da existência, e nós temos de nos interessar pela totalidade da vida. Quando consideramos o que está ocorrendo no mundo, começamos a compreender que não há processo exterior nem processo interior; há só um processo unitário, um movimento integral, total, sendo que o movimento interior se expressa exteriormente, e o movimento exterior, por sua vez, reage ao interior."

"O conflito é o principal fator de deterioração. A compreensão dos conflitos – compreensão não parcial, porém total – é a mais importante tarefa da mente humana. Porque só com a completa terminação do conflito podem acabar todas as ilusões; só então a mente tem a possibilidade de penetrar fundo na investigação da verdade, investigar se algo existe além do tempo."

"A verdade pode ser uma das coisas mais devastadoras e desconfortáveis. O homem que busca o conforto não deseja a verdade: deseja apenas segurança, proteção, um refúgio onde não seja perturbado. Já o homem que busca a verdade tem de abrir a porta às perturbações e às tribulações, porque só nos momentos de crise há o estado de alerta, há vigilância, ação. Só então aquilo que é pode ser descoberto e compreendido.

Marcius Chaves Santos
Matemático / Estudante de Filosofia