A
Psicologia da Composição
* Uma
perspectiva do vazio *
Um
lançar de olhos sob João Cabral de Melo Neto
Por Leandro Bertoldo
A
Psicologia da Composição
(João
Cabral de Melo Neto)
Saio
de meu poema
como
quem lava as mãos.
Algumas
conchas tornaram-se,
que o
sol da atenção
cristalizou;
alguma palavra
que
desabrochei, como a um pássaro.
Talvez
alguma concha
dessas
(ou pássaro) lembre,
côncava,
o corpo do gesto
extinto
que o ar já preencheu;
talvez,
como a camisa
vazia,
que despi.
Esta
folha branca
me
proscreve o sonho,
me
incita ao verso
nítido
e preciso.
Eu me
refugio
nesta
praia pura
onde
nada existe
em
que a noite pouse.
Como
não há noite
cessa
toda fonte;
como
não há fonte
cessa
toda fuga;
como
não há fuga
nada
lembra o fluir
de
meu tempo, ao vento
que
nele sopra o tempo.
Neste
papel
pode
teu sal
virar
cinza;
pode
o limão
virar
pedra;
o sol
da pele,
o
trigo do corpo
virar
cinza.
(Teme,
por isso,
a
jovem manhã
sobre
as flores
da
véspera.)
Neste
papel
logo
fenecem
as
roxas, mornas
flores
morais;
todas
as fluidas
flores
da pressa;
todas
as úmidas
flores
do sonho.
(Espera,
por isso,
que a
jovem manhã
te
venha revelar
as
flores da véspera.)
O
poema, com seus cavalos,
quer
explodir
teu
tempo claro; rompendo
seu
branco fio, seu cimento
mudo
e fresco.
(O
descuido ficara aberto
de
par em par;
um
sonho passou, deixando
fiapos,
logo árvores instantâneas
coagulando
a preguiça.)
Vivo
com certas palavras,
abelhas
domésticas.
Do
dia aberto
(branco
guarda-sol)
esses
lúcidos fusos retiram
o fio
de mel
(do
dia que abriu
também
como flor)
que
na noite
(poço
onde vai tombar
a
aérea flor)
persistirá:
louro
sabor,
e ácido
contra
o açúcar do podre.
Não a
forma encontrada
como
uma concha, perdida
nos
frouxos areais
como
cabelos;
não a
forma obtida
em
lance santo ou raro,
tiro
nas lebres de vidro
do
invisível;
mas a
forma atingida
como
a ponta do novelo
que a
atenção, lenta,
desenrola,
aranha;
como o mais extremo
desse
fio frágil, que se rompe
ao
peso, sempre, das mãos
enormes.
É
mineral o papel
onde
escrever
o
verso; o verso
que é
possível não fazer.
São
minerais
as
flores e as plantas,
as
frutas, os bichos
quando
em estado de palavra.
É
mineral
a
linha do horizonte,
nossos
nomes, essas coisas
feitas
de palavras.
É
mineral, por fim,
qualquer
livro:
que é
mineral a palavra
escrita,
a fria natureza
da
palavra escrita.
Cultivar
o deserto
como
um pomar às avessas.
(A
árvore destila
a
terra, gota a gota;
a
terra completa
caiu,
fruto!
Enquanto
na ordem
de
outro pomar
a
atenção destila
palavras
maduras.)
Cultivar
o deserto
como
um pomar às avessas:
então,
nada mais
destila;
evapora;
onde
foi maçã
resta
uma fome;
onde
foi palavra
(potros
ou touros
contidos)
resta a severa
forma
do vazio.
**********
CONSIDERAÇÕES:
Abordarei
a Psicologia da composição, de João Cabral de Melo Neto, em três momentos
distintos, mas que se completam e se harmonizam entre si. É uma separação apenas
didática que, acredito, facilita a compreensão do que seja tal psicologia que se
arboriza e se ramifica em questões complexas, muitas vezes paradoxais, que terá
na linguagem grandes problemas gerais de comunicação.
Assim, iniciarei tratando das considerações essenciais da Psicologia da composição, extraídas do poema de mesmo nome para, logo após, explanar a lógica da composição através de questões metafóricas e imaginárias e, finalmente, finalizar mostrando como a Psicologia da composição contribuiu e contribui para a ruptura com o lirismo em busca da comunicação poética.
PARTE
1
Depuramento, equilíbrio, controle racional, poiesis que favorece a construtividade do poema, escala reflexiva e metalinguística, mutilação do sentimento, secura emocional. Aqui reside a Psicologia da composição, de João Cabral de Melo Neto que, como disse, se estende por questões altamente complexas. Partirei exatamente da poiesis, pois, a partir dela, todas as outras questões irão se encaixando como num verdadeiro quebra-cabeça ou, já me reportando a metáforas, como num prédio em construção cuja matéria prima – o tijolo – é nada mais, nada menos, do que a palavra.
A
preocupação de João Cabral com a construtividade do poema é tão grande, que é
evidente em sua produção poética um despojo de sentimentalismo, graças à
preocupação formal que lhe é inerente. Essa preocupação formal, a qual é
necessária para que aconteça de fato a comunicação poética através da seleção
vocabular, questão essa que irei tratar mais adiante, faz com que a sua poesia
seja limpa, sem excesso de verbalismo, essencialmente visual e, por isso mesmo,
beirando a prosa. Sendo assim, João Cabral é um poeta anti-romântico e
anti-sentimental, o qual defende que a essência da arte está na palavra
objetivada pura e crua e não no que ela invoca, ou melhor dizendo, no seu
sentimento.
De
fato, se observarmos, tal preocupação construtivista se faz presente no próprio
título “A PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO”. Psicologia vem do grego psyche, elemento
comparativo de psiqu(e), que significa alento, sopro de vida, alma. A princípio,
os estudiosos de João Cabral podem se assustar, ou no mínimo, estranhar, pois,
como foi dito, o poeta é um anti-sentimental, ou seja, para ele a poesia não
existe na emoção, mas na razão, e ‘alma’ nos remete a um estado comum de
sentimentalismo e transcendência. Porém, continuando o raciocínio, composição
vem de compor, que é produzir, inventar, dar feitio ou forma, isto é, exatamente
construir. Assim, para João Cabral a alma da poesia vem da construção, do
pensamento racional, o que vem comprovar e ratificar a sua posição
anti-romântica contra aqueles que acham que a poesia está na
emoção.
Essa
psicologia cabralina está presente em todos os momentos da segunda fase do poeta
que, a partir daí, sela, num laço matrimonial, uma união sólida e sem risco de
separação. Torna-se um processo criativo de produção poética que culminará às
vezes de forma isolada, outras vezes cotejada, mas sempre diferenciada em seus
modos de compor. É onde a linguagem se apresenta ora de forma salientada, outra
ora implícita e alegoricamente fechada em matérias diversas e, ainda, embutida
num assunto mais específico.
A
Psicologia da composição, como disse, traz fatos paradoxais, mas o que vem a ser
isso? São os contrastes que encontramos em sua construção poética. Tais
contrastes evidenciam-se em ações redutivas como as de lavar e de despir para a
busca do vazio, não para se anular, mas para preencher. Escreve João Cabral:
“saio do meu poema como quem lava as mãos”. Repare que o Poeta se mantém fora de
seu próprio poema com intuito de anular toda uma emoção criadora que, por
ventura, possa existir. É interessante observar que Cabral, no ato de ‘lavar’ as
mãos, constrói uma das mais antigas tradições imaginárias da simbologia da água
e, portanto, neste caso, a mais coerente também, que é o fato de purificar-se
dos seus sentimentos e se regenerar através da água, massa indiferenciada com o
poder de desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração. Isso
significa um retirar da subjetividade para o acréscimo da linguagem formadora.
Evidencia-se, portanto, a busca de um somatório a partir de operações
diminutivas. É como dizer que o fogo queima sem arder ou que suas chamas ardem
sem queimar. Isso faz parte de uma ascese intelectual carregada de negatividade,
cuja depuração dos sentimentos se exterioriza de forma dialética, isto é, uma
forma que está sempre em movimento (água) como num “fazer que desfaz e num
desfazer que refaz” ("A máquina do poema").
Ainda
sobre a água, na Ásia, ela é a forma substancial da manifestação, o símbolo da
fertilidade e da sabedoria, da coesão e da coagulação. Interessante notar que na
continuação do poema, Cabral diz - “Algumas conchas tornaram-se, que o sol da
atenção cristalizou (...)”. Se associarmos o ato de cristalizar da concha com a
coagulação da água, veremos que a idéia construída é a da secura e do menos, que
se associa à negatividade, cujo sol se manifestou como princípio e razão. Repare
que o sol nos remete à clareza que está no mesmo campo semântico da objetividade
que se diferencia, portanto, da noite que é o seu oposto, ou seja, a
subjetividade e a emoção. Vale dizer que na tradição oriental, o dia e a noite
representados, respectivamente, pelo sol e a lua, confere a essa o significado
de empurrar, afastar, enquanto ao sol cabe-lhe a tarefa de puxar, atrair, ou
seja, em nosso raciocínio, é o mesmo que dizer que ‘afastando’ a emoção (lavando
as mãos), ‘atrairemos’ a razão, isto é, a objetividade do poema. Se atentarmos
para o fato de que na simbologia a lua também se liga à água e o sol se liga ao
fogo e que, por sua vez, a água se liga ao pulmão pelo seu processo de absorção
e purificação do ar, cujas partículas de água se faz presente, e o fogo ao
estômago pelo processo de retenção onde é atraído o alimento para a retirada do
que é substancial, veremos que realmente João Cabral é um poeta da construção,
do pensamento, da perspicácia, da coerência e da objetividade, sempre a favor de
uma preocupação formal e metalinguística, pois ele sempre utiliza de um ato para
explicar outro. É o signo dentro do signo (significante) que se refere a um
significado comum. Até mesmo a concha possui o seu sentido se a olharmos como
algo vazio a qual foi preenchida pelo vento - “Talvez alguma concha dessas (ou
pássaro) lembre, côncava, o corpo do gesto extinto que o ar já preencheu (...)”.
Repare que o poeta assemelha a concha ao pássaro. É perfeitamente compreensivo
se observarmos que o pássaro quando voa preenche as sua asas com o
vento.
Assim,
entramos num ponto crucial da Psicologia da composição – a negação, por
completo, da forma encontrada pela forma preenchida. Isso quer dizer que para o
autor de Morte e vida severina, a poesia não é obra do acaso ou obtida por
intervenção divina, como pensavam os românticos. Antes disso, a poesia, como
vimos, é construída e, por isso, é necessário paciência, esforço, inteligência,
perseverança e atenção.
Farei
aqui um recorte para a questão da ‘atenção’, pois ela é um fator extremamente
importante para compreendermos a poesia de João Cabral. É ela que irá retirar a
emoção e guiar o Poeta que terá, na folha de papel, seu canal para a injeção de
imagens em busca da poesia construída – “Esta folha branca me proscreve o sonho,
me incita ao verso nítido e preciso.” Cabral ainda escreve - “Eu me refugio
nesta praia pura onde nada existe em que a noite pouse.” Observe que o poeta
associa a folha branca do papel com a praia pura onde nada existe em que a noite
pouse, ou seja, além da evidência metalinguística – um signo e ideia que se
refere a um outro signo e ideia para a construção de um único sentido – João
Cabral usa de metáforas inusitadas e cotidianas para dizer que a folha, por ser
branca, está vazia como a praia onde nada existe para que a noite
venha.
Assim,
predomina a imagem novamente do sol que se harmoniza com a ideia de clareza
embutida na folha branca (repare que não é escura) diferenciando com a noite. É
exatamente aqui que a ‘atenção’ prevalecerá, pois ela fará com que o poeta se
fixe na folha de papel, que por ser branca, o ajudará a não se desvencilhar e se
perder no escuro das emoções. E ainda continua – “Como não há noite cessa toda
fonte; como não há fonte cessa toda fuga; como não há fuga nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento que nele sopra o tempo”. Repare que Cabral se refere à
‘fonte’ como a inspiração, cuja essência é negada, da mesma forma que nega o
tempo em que sua poesia era fluida (como a água), sem a ‘atenção’ da
racionalidade. É novamente a presença da metalinguagem, a qual critica até mesmo
a sua forma de escrever, ou melhor dizendo, a sua anti-forma. A ‘atenção’,
assim, é responsável pela sabedoria de João Cabral, que enxerga o positivo
dentro do negativo, ou seja, vislumbra a poesia dentro do vazio, do menos, do
nada.
Para
explicar, analogicamente, a existência do positivo no negativo dentro da
Psicologia da composição, de João Cabral de Melo Neto, podemos recorrer ao que
chamarei de A Parábola da Espada descrita pelo filósofo japonês
Mokiti Okada (1882 – 1955):
"Antigamente,
para se fazer uma boa espada, era necessário esquentar o aço até a
incandescência, batê-lo com martelo, sobre uma bigorna, e, a seguir, colocá-lo
na água. Repetia-se várias vezes essa operação, isto é, caldeava-se e batia-se o
aço em brasa, mergulhando-o, depois, na água. (...) A espada só adquire todas as
qualidades graças à alternância do caldeamento e esfriamento e às fortes
marteladas sobre a bigorna".
Considerando
a espada como sendo a poesia e a operação de caldeamento e esfriamento em
alternância como instrumentos de sua construção, facilita nossa compreensão do
que seja a poética de João Cabral de Melo Neto. Dito isso, fica claro quando
disse anteriormente que para o autor de A educação pela pedra, a poesia não é
obra do acaso ou obtida por intervenção divina, e sim, através de muito trabalho
e esforço.
É por
isso que João Cabral ainda escreve – “Neste papel logo fenecem as roxas, mornas
flores morais; todas as fluidas flores da pressa; todas as úmidas flores do
sonho”. É a forma utilizada pelo poeta de ir contra a poesia solta, sem
reflexão, fluida e sem preocupação formal que dilacera a verdadeira arte de
escrever e de compor. Levando-se em conta que, embora cada flor possua, pelo
menos secundariamente, um símbolo próprio, ela não deixa de ser, de maneira
geral, símbolo do princípio passivo (a mulher) e, como tal, não corresponde à
poesia construída e pensada que, ao contrário, clama pelo princípio ativo da
racionalidade. É curioso observar que pela significação (simbologia), o cálice
da flor é o receptáculo da Atividade Celeste, entre cujos símbolos estão a chuva
e o orvalho e, como já sabemos, para João Cabral a poesia não é alcançada pela
providência divina, ou seja, ele não concebe o poeta como um ser iluminado, o
que faz com que essa simbologia da flor como significação celeste seja realmente
negada. Interessante ainda notar que essa simbologia continua se referindo à
umidade (água) fluida, também negada completamente em razão da poesia
objetiva.
Todo
esse esmero cuidadoso dispensado à arte de compor, vem do pressuposto que, se
assim não for, o descuido e o acaso podem vir fortuitamente e fazer com que a
emoção supere a razão, fazendo, por sua vez, com que a poesia se
desestruturalize e, por conseguinte, passe a se encontrar mutilada ou, até
mesmo, morta. Por isso, faz-se necessário domar as palavras como a um cavalo e
impedir a emoção – “O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro;
romper seu branco fio, seu cimento mudo e fresco”. Repare a ideia de
enclausuramento existente no ‘cimento mudo e fresco’ em que a poesia é forçada a
ficar para que sua existência permaneça. Repare, igualmente, que o cimento é
fresco e não endurecido, o que significa que há sempre o risco de ser transposto
e invadido pela emoção representada, metaforicamente, pelo cavalo. O cavalo é um
animal cuja força é superior a do homem, e uma crença, que parece estar fixada
na memória de todos os povos, associa originalmente o cavalo às trevas. Ele é o
filho da noite e do mistério. Todos esses atributos relacionados ao cavalo são
tudo o que João Cabral renega: trevas = noite; mistério = subjetividade, em
contraposição de clareza = dia; verdade = objetividade. É por esse motivo que o
‘cavalo’ precisa ser domado, pois – “O descuido ficará aberto de par em par; um
sonho passou, deixando fiapos, logo árvores instantâneas coagulando a preguiça”.
O risco, pois, é enorme. O ‘sonho’ que, de um fiapo, pode se transformar em
grandes árvores, ou seja, a emoção, que tudo pode, pode também tomar conta da
razão.
Assim,
é preciso que a ‘atenção’ permaneça viva para que sua existência aja sob as
palavras, a fim de ‘domesticá-las’ como se faz com as abelhas – “Vivo com certas
palavras, abelhas domésticas. Do dia aberto (branco guarda-sol) esses lúcidos
fusos retiram o fio do mel (do dia que abriu também como flor) (...)”. Nessa
passagem, as palavras se encontram no mesmo campo semântico das abelhas que
picam e incomodam, mas produzem mel. Elas constroem o casulo e, pela flor, dá
origem ao mel que é agradável. É, antes de tudo, um símbolo vasto de riqueza, de
coisa completa e, sobretudo, de doçura. O mel (emoção) se opõe ao amargo do fel
(palavra pura). Segundo Dionísio, o mel designará a cultura religiosa, o
conhecimento místico, os bens espirituais, a revelação ao iniciado. Virgílio
chamará o mel de dom celeste do orvalho. O mel designará a beatitude suprema do
espírito e o estado de Nirvana, que é o símbolo de todas as doçuras. O mel
realiza a abolição da dor.
Dito
isso, continua sendo tudo ao contrário do que pensa João Cabral, pois, mais uma
vez, para ele a inspiração e a emoção não existem e, sendo assim, a poesia não
vem de Deus. Muito pelo contrário, a poesia causa dor e sofrimento em seu
processo de criação e produção. É por isso que para
João Cabral, o poeta deve se postar acima das palavras, a fim de domesticá-las,
sempre.
Relacionadas
todas essas questões, evidenciarei a importância “não da forma encontrada como
uma concha, perdida nos frouxos areais” ou da “forma obtida em lance santo ou
raro (...)” que, creio, está bem entendida através de seus códigos marítimo e
religioso negados por João Cabral. Tratarei, pois, do código da construção
propriamente dita que mantém no ‘novelo’ e na ‘aranha’ a sua razão de
ser.
Assim,
temos – “Não a forma encontrada (...); não a forma obtida (...); mas a forma
atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola, aranha; como o
mais extremo desse fio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos enormes”.
Observe que a ideia que se evidencia é da atividade de tecer em que a ponta do
novelo vai se desenrolando lentamente a fim de se construir algo. É como a
aranha que tece a sua teia, sempre movida pela atenção para que aja perfeita
igualdade simétrica em sua forma. Porém, a teia, de fios frágeis, se rompe,
sempre, ao peso das mãos enormes. Se observarmos, será sempre um processo de
desfazer para fazer e refazer, sempre assim. Repare que, em relação ao novelo,
esse, primeiro, terá que se desfazer para que seu fio se faça em alguma coisa.
Já em relação à aranha, essa estará sempre buscando uma forma que, certamente,
diferenciará de uma para a outra, sempre que seus fios se romperem pelo peso das
mãos e serem refeitos.
A
preocupação enquanto forma simétrica, cuja relação encontra-se no ato de tecer,
vem de encontro à preocupação da elaboração formal que João Cabral despende à
sua poesia pois, para ele, deve-se desconfiar da espontaneidade ou de tudo que
não tenha sido submetido, antes, a uma elaboração cuidadosa. E, de fato, se
olharmos com atenção a forma final da teia da aranha ou o produto proveniente de
um fio de lã, eles serão sempre diferentes de um para outro, mas existirá nesses
atos uma razão lógica de ser, não sendo, portanto, sua confecção simplesmente
por acaso. E é esse fazer e desfazer que acabará por criar um ciclo inacabado
onde, tratando o fio do novelo ou da teia como poesia, o poeta estará sempre
buscando uma forma nova e criadora, o que significa que ele terá, sim, a sua
poesia percebida e perseguida, mas nunca completamente alcançada. E será
exatamente este não alcançar que irá gerar angústia e sofrimento evidenciado, no
caso de João Cabral, em sua produção poética. Tudo isso diz respeito ao seu
estilo quanto à sua atitude criadora, ou seja, é o estilo cauteloso, lento, de
avanço e de recuo, de paciência e de atenção como quem enrola e desenrola, em
movimentos de ida e volta, nos fios do discurso que os fusos das palavras tramam
a rede verbal das coisas.
Tanto
a angústia como o sofrimento pode ser visto como um estado de negação, em que a
felicidade, com toda sua emoção e sentimentalismo associados, não só ao homem,
como também às flores, aos animais, ao horizonte e, por fim, à natureza, é posta
em segundo plano, ou melhor dizendo, não se manifesta frente à crueza fria das
palavras. Neste sentido, João Cabral associa a palavra ao mesmo universo da
pedra, isto é, para ele a palavra não passa de um objeto inerte, frio e
destituído de sentimentos. Pode-se verificar o que estou dizendo ao observar a
seguinte passagem de sua Psicologia da composição – “São minerais as flores e as
plantas, as frutas, os bichos quando em estado de palavra. É mineral a linha do
horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras. É mineral, por fim,
qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra
escrita”.
Observe
que para João Cabral tudo é mineral – as plantas, os bichos, nossos nomes, as
palavras, etc. Mineral vem de minério que, por sua vez, nos remete à pedra. Essa
é tida como elemento de construção e está ligada ao sedentarismo dos povos e a
uma espécie de cristalização cíclica. Isso significa que, cristalizada a pedra,
essa ficará cada vez mais sólida e se assemelhará à ideia do objetivismo,
diferentemente do líquido (fluido) que encontramos, por vez, numa ideia
subjetiva. Para o poeta, tudo que existe enquanto palavra é sólido, frio e bruto
como a pedra. Até mesmo o papel, morada da palavra, é essencialmente pedra – “É
mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não
fazer”.
Por
fim, este estado de crueza e melancolia pelo vazio, cuja essência do sentimento
se faz necessário, é evidenciado na última parte da Psicologia da composição
quando João Cabral diz – “Cultivar o deserto como um pomar às avessas”, ou seja,
tudo precisa ser vazio, sem nenhuma emoção como ‘um pomar sem frutos’. Esses,
quando existem, caem ao chão e apodrecem. É preciso, portanto, cultivar um pomar
utilizando-se da atenção para impedir o nascimento do fruto e incentivar a
permanência do vazio, pois aí reside o verdadeiro pomar, isto é, a verdadeira
poesia destituída de inspiração e sentimento. Assim, o pomar é constituído de
palavras que renega o fruto e se saboreia com sua ausência – “então, nada mais
destila; evapora; onde foi maçã resta uma fome; onde foi palavra (potros ou
touros contidos) resta a severa forma do vazio”. Interessante notar que touro,
nas religiões indo-mediterrâneas, representa os deuses celestes, ideia religiosa
ligada à espiritualidade e sentimento e negada por João Cabral o tempo todo em
sua criação poética e, por isso mesmo, devendo ficar contida no
vazio.
PARTE
2
Para
João Cabral de Melo Neto, a poesia, como para Carlos Drummond de Andrade, está
no "reino das palavras" à espera de que se materialize na folha de papel. Sendo
assim, seu conceito de literatura é que ela é formada por palavras, cada qual
com suas especificidades, que irá montar a criação, que se desencadeará na arte.
Essa montagem diz respeito, como vimos, à poesia limpa, sem excesso de
verbalismo, dotada de preocupação formal, metáforas e imagens. Essas imagens,
juntamente com as metáforas tão comuns na obra cabralina e as suas relações com
as estrofes, são pontos importantíssimos da lógica da composição que é
determinada, basicamente, por dois eixos – um vertical e outro horizontal.
No
eixo vertical é onde se enquadra a metáfora desagregada no plano
metalinguístico. É a arborescência da imagem a partir de seus núcleos verbais
que se ramificam e se desdobram formando uma série de significantes correlatos e
opostos, porém podendo ser complementares. Em relação ao desdobramento
metalinguístico, podemos citar o poema “Litoral de Pernambuco”:
O mar
se estende pela terra
em
ondas ondas que se revezam
e vão
se desdobrando até ondas
secas
de outras marés
As
ondas da areia, que mais adiante
se
vão se desdobrando nos mangues,
que
se desdobram (quase palha)
num
capim lucas, de limalha,
que
se desdobra em canaviais,
desdobrados
sempre em outros mais,
e
desdobrando ainda mais longe
o
campo raso do horizonte,
como
se tudo fosse o mar
em
mais ondas a desdobrar
a
mesma natureza rente
de um
verde ácido e higiene:
.................................................
Repare
a arborescência de imagens metalinguísticas quando do desdobramento das ondas do
mar para as ondas da areia que se desdobram nos mangues que, por sua vez, se
desdobram no capim e, desse, para os canaviais e, daí, para outras mais. Ou
seja, é a onda que se refere à onda da onda da onda da onda e de outras mais. Em
relação aos significantes opostos, os núcleos verbais mar e terra se opõem da
seguinte forma: onda x praia; praia x mangue; mangue x capim; capim x
canavial.
Já em
relação ao significante complementar a partir de um sentido oposto vinculado a
um mesmo núcleo semântico, podemos citar o poema “Negro da Cabra”:
A cabra é negra. Mas seu negro
não é
o negro do ébano douto
(que
é quase azul) ou o negro rico
do
jacarandá (mais bem roxo).
O negro da cabra é o negro
do
preto, do pobre, do pouco.
Negro
da poeira, que é cinzento.
Negro
da ferrugem, que é fosco.
Repare
que o núcleo metafórico predomina um processo diminutivo nas passagens dos
termos: (o negro não é do ébano, mas do preto; não é do rico, mas do pobre).
Porém, há outros casos onde os núcleos metafóricos podem se desdobrar por
acréscimo, o que não é o caso neste poema de Cabral.
No
que se refere ao eixo horizontal da lógica da composição, basta saber que o que
se evidencia é o aspecto permutativo da organização estrófica, isto é, toda vez
que os versos são agrupados de forma diferente, há também diferenças de
sentidos.
PARTE
3
A
Psicologia da composição, enquanto poética negativa, em que João Cabral constrói
toda uma forma própria de pensar e sentir, caracteriza a ruptura com o romântico
tradicional, pois, como já vimos, a poesia cabralina visa às palavras e não os
sentimentos. Esses são neutralizados pela intelectualidade racional em que a
secura emocional inviabiliza o Eu lírico e todas as suas expressividades, numa
espécie de epoqué, que é o que determina uma troca de valores daquilo que é
posto em evidência. Essa troca de valores quer dizer que, na verdade, os
sentimentos não são anulados por completo, e sim percebidos de formas diferentes
e reduzidos (poética negativa) de acordo com a nossa liberdade.
Assim,
podemos dizer que a poesia de João Cabral de Melo Neto, é uma poesia em
constante luta entre a razão e a emoção, ou seja, na realidade ele nem supera e
nem liquida de todo o lirismo. O que acontece não é uma anulação total, mas um
esvaziamento sentimental que caracterizará numa perda de efetividade
empírica.
Essa
tão caótica situação, é compreendida a partir de duas premissas: a primeira é
que João Cabral não rompe com as formas tradicionais do verso, pois ele inventa
a sua linguagem a partir delas. É, portanto, a constatação do paradoxo da obra
de João Cabral que se mantém no seu estado de construção aliado ao verso do qual
não se abdica, embora o modifique em relação ao seu estado sentimental e
romântico. É por isso que disse sempre que João Cabral de Melo Neto é
considerado um poeta anti-sentimental e anti-romântico. É a partir dessa
modificação que poderemos vislumbrar a segunda premissa, onde os versos e
estrofes mais tradicionais são, para o autor de O cão sem plumas, os menos
literários possíveis. Cabral prefere que seus versos atinjam uma esfera bem mais
popular para que aja comunicação poética. Ainda defende que para haver essa
comunicação, a qual é uma das razões primeiras da poesia, o objetivismo precisa
tomar o lugar do subjetivismo, ou seja, é preciso modernizar o poema quanto à
sua estrutura, métrica, enfim, colocá-lo mais próximo das pessoas. Tudo isso é
notado na própria Psicologia da composição, quando o poeta utiliza-se de formas
e nomes comuns que fazem parte do cotidiano das pessoas como cavalo, aranha,
novelo, abelha, e outras mais.
Porém,
nossa atenção é chamada para percebermos o descomprometimento da tendência
moderna típica que, segundo sua percepção, também não atingiu uma condição
comunicativa exata. Em relação a isso, são as próprias palavras do poeta: "O
poema moderno típico é um híbrido monólogo interior e discurso de praça, de
diário íntimo e de declaração de princípio, de balbucio e de hermenêutica
filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento
melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para
qualquer espécie de mensagem que o seu autor possa enviar.(...) Esse tipo de
poema é a própria ausência de construção e organização; é o simples acúmulo de
material poético, rico, é verdade, em seu tratamento de verso, da imagem e da
palavra, mas atirado desordenadamente, numa caixa de depósito".
Assim,
a falta de preocupação organizacional e de construção, isto é, a liberdade pura
e simples observada na tendência moderna, também desfavorece a comunicação
poética. Portanto, para João Cabral é necessário que o poeta não renuncie o
espírito de pesquisa formal da linguagem com suas respectivas técnicas, mas, no
entanto, não pode deixar que essa linguagem, ou mais precisamente, essa
preocupação formal, o enclausure e o pode enquanto sujeito criativo. É por esses
motivos que disse em minha explanação, que a poesia de João Cabral de Melo Neto
é, ao mesmo tempo, percebida e buscada intensamente, porém jamais alcançada por
completo. É a perspectiva do vazio, a luta incansável, sofrida, angustiante e
interminável, que faz da Psicologia da composição a maneira complexa, intrigante
e instigante de ser do poeta pernambucano.
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