6 de março de 2012

Vivência n.2

Por Angelo P. Campos[1]





Caríssimos,

Saudações.

Em plena tarde de segunda [feira], recebo chamada inesperada. O visor do celular acusava DDD de outros rincões desse imenso Brasil. Cidadão honrado (isso hoje quer dizer “nome limpo”, a despeito de outrora “homem de valor”, “moral elevado”), se algo devesse optaria, em sã consciência, não atender. Contudo, surpreendo-me com a voz mecânica da moça do outro lado da linha, chamando imediatamente pelo meu nome, solicitando confirmação de meus “dados cadastrais”, segundo ela, “pra que não fiquem dúvidas” de que sou eu, eu mesmo. Além do mais informava solenemente que, pra minha “inteira segurança”, o teor da conversa seria gravado. Tudo bem! Confirmados os tais dados cadastrais (Nome do Pai, Nome da Mãe, Nome do Filho, digo, CPF) e suplantada qualquer hipótese de que, talvez, eu não seja, afinal além de mim, senão eu mesmo, informa a citadina tratar-se de minha assessora bancária, afilhado que sou do Banco iRreal Internacional do Brazil, antigo Praça da Forquilha [assim dito, pra não ofender a integridade real da nobreza, mas, se para bom entendedor meia pala bas, está dada a ordem da confeitaria].
Pergunta se está tudo bem comigo, respondo que sim. “Graças a Deu$!” alude ela, embora não alcance o significado da citação, nunca soube o que Ele tem a ver com isso! Pergunta se há algum projeto a se realizar em 2012, respondo que não informarei nada a esse particular. “Pois bem”, continuou, “o motivo de meu contato é que o Sr., na condição de cliente especial, foi agraciado com linha de crédito no valor de R$ 3.960,00 (ué, sou ‘especial’?), para realizar seus projetos em 2012, isto não é formidável?” (...) sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, sequer um soluço, continuou a atropelar-me com sua voz de locomotiva: “Saiba que para liberação do crédito em sua conta, totalmente isento de quaisquer taxas hoje praticadas pelo mercado, só precisamos da sua aprovação! Por este crédito o Sr. pagará apenas o valor de R$ 351,55 em 36 parcelas!” Ah, bom, agora entendi o quanto sou um cliente especial. E quantos não há como eu, especialíssimos!
Um simples cálculo me diz que clientes especiais pagam 3x mais e mais um pouco o que empurram, digo, recebem. Temos, assim, estabelecido em nosso país, o roubo institucionalizado, aprovado e compartilhado pelas saltimbancas autoridades [in]competentes.
Do estelionato, sei que é crime capitulado no Código Penal Brasileiro (Título II, Cap. VI, artigo 171), assim rezado: “Obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento” [grifo meu], inexistindo a forma culposa. Portanto é crime doloso, cuja pena varia de 1 (Hum) a 5 (cinco) anos além de multa.
Minha grande desconfiança é a de que os criadores da lei são propriedade privada dos saltimbancos trapalhões, digo, espertalhões. Afinal nunca vimos, nem no cinema, gente honesta na cadeia. Há sempre algo que os impede de conhecer o artigo 171 em essência, isto é, para além da mera cognição. Sugiro ao menos a proximidade com o 174, Induzimento à Especulação, que assim reza: “abusar, em proveito próprio ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade mental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa” [outro grifo meu]. Neste caso a pena varia de 1 (Hum) a 3 (três) anos além de multa.
Pra toda sorte de maquinações na sordidez do sistema há a previsão de um crime. Contudo, no lusco-fusco com que se nos apresentam as falácias monetárias, nossos legisladores, nossos juízes, nossos promotores não são mais do que bufões engalanados em suas vestes negras com rendinhas brancas no pescoço (sim, ficou lindo no quadro da formatura!).
Caros amigos, nenhum juiz pode ser mais bem qualificado senão a consciência livre. Pra essa classe de espetáculos ouçamos a sabedoria de uma geração passada, aquela que não conheceu internet, celular ou Big Brother: “quando a esmola é demais, até o santo desconfia”.
Se de fato precisamos de um sistema, saibamos ao menos exercer o teor da liberdade que impregna nossas consciências: não precisamos de um sistema que nos escraviza. De outra sorte, são consciências escravas que mantêm a autoridade do capataz.
Agradeci à moça de voz cibernética (ando desconfiado que sejam belas androides que nos falam), mas, fazendo uso da condição de ‘cliente especial’ (devo ter acesso à gravação de minha conversa!) solicitei a inversão dos termos da proposição: propus ao Banco iRreal Internacional do Brazil creditar em minha conta a quantia de R$ 12.655,80 e em troca dispor-me-ia a quitar o débito (ou seria o crédito?) em longínquas 36 parcelas de R$110,00
Conforme reza a ladainha, minha assessora diz que “vai estar passando pra o gerente” (sic) sendo, até então, ausente qualquer retorno. Às vezes pergunto à minha rosa se esse gerente existe mesmo!
Bem amigos, como disse no início, não envolvamos o sobrenatural. Deixemos essas entidades metafísicas todo poderosas repousarem em seu trono celeste, como tal, afastado das monetariadas humanas.






[1] O autor é filósofo, psicanalista e jardineiro nas horas vagas.
Licença Creative Commons
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradecemos seu interesse em nosso trabalho. Sinta-se livre para comentar e/ou criticar, mantendo o bom nível dos argumentos.